"A nossa atenção coletiva está voltada para o viés negativo dos acontecimentos, até na exposição de um corpo nu como forma de expressão de arte. Há milhares de estudos realizados sobre obsessão, depressão e bipolaridade e apenas algumas centenas sobre empatia, carinho e amor próprio na história da psicologia humana".
Hoje em dia, temos um diagnóstico para tudo.
As crianças sofrem de bullying; os adolescentes de Fomo (Fear of Missing Out). Os esquerdistas são cheio de mimimi, e os de direita são homofóbicos. Se chove muito, temos um problema de alagamento; se chove pouco, de seca. Os veganos são frescos pra cacete e os carnívoros são sem noção. Se você nunca foi considerado bipolar ou com déficit de atenção, no mínimo já ficou na dúvida se era depressivo, compulsivo ou hiperativo.
Nossa atenção coletiva está voltada para o viés negativo dos acontecimentos. Há milhares de estudos realizados sobre obsessão, depressão e bipolaridade e apenas algumas centenas sobre empatia, carinho e amor próprio na história da psicologia humana. Essa necessidade de analisar o problema gera uma epidemia de informação, quando não de opinião, que vem para atender o ímpeto racional de explicar, definir e entender as nossas reações variadas ao cotidiano da vida. Mas todo esse processo de adaptar a realidade sob a perspectiva da problemática está impactando seriamente a nossa saúde física e mental.
Vivemos mais tempo do que os nossos avós, mas temos menos qualidade de vida. Como conquistamos tanto avanço e desenvolvimento para nos enchermos com mais medicamentos do que as gerações passadas? Talvez não haja um aumento de doenças e sim um aumento da classificação delas. Na busca por identificar o problema e remediar a tempo, ampliamos tanto o leque dos sintomas que corremos risco de diagnosticar de antemão algo que nunca se desenvolveria. É o efeito overdiagnosis (exagerar no diagnóstico).
O termo overdiagnosis surgiu pela primeira vez na área oncológica quando constatou-se que os exames de detecção preventivo ao câncer estavam gerando diagnósticos desnecessários e imprecisos. Alguns pacientes eram tratados ao apresentarem sintomas precoces da doença que não necessariamente chegariam a se manifestar, enquanto o tratamento em si causava danos financeiros e psicológicos. Hoje, esse efeito expande-se para outras áreas, principalmente no diagnóstico de transtornos psicológicos.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), publicado pela Associação Psiquiátrica Americana, oferece uma denominação comum para psicólogos e psiquiatras classificarem doenças mentais. Na lista do DSM-I, em 1952, foram classificados 106 condições. Na DSM-III, de 1980, foram listados 265. O DSM-IV tinha 297, e esse aumento acarretou uma série de reclamações pois era impossível qualquer pessoa passar pela lista e não se identificar com algum transtorno mental. Para o atual DSM-V foi assegurado que não haveria nenhum acréscimo novo.
Um efeito colateral do diagnóstico preventivo é que estamos ficando mais doentes, mais cedo. A cada quatro pessoas, uma toma algum medicamento de tarja preta. Ou seja, todos nós provavelmente conhecemos alguma pessoa intensamente medicada. Transformar todas as pessoas em pacientes não é necessariamente torná-las mais saudáveis, mesmo que esse seja o discurso da indústria farmacêutica. Explorar o medo da doença e a crença de que quanto antes se identificar o problema maiores as chances de cura, tem o seu contraponto de que o diagnóstico em si muitas vezes cria uma doença que jamais existiria.
Talvez se não nos preocupássemos tanto em encontrar problemas, teríamos menos deles.
Publicado na coluna do Infame : https://infame.us/2017/12/05/doentesemproldasaude/
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