"A ironia das crenças limitantes é que acreditamos tanto nos seus limites que elas nos impedem de questionar outra forma de enxergar a vida".
A língua chinesa é extremamente eficiente e elegante, afinal, levou 5.000 anos para se aperfeiçoar. Além de ser exata no que quer expressar, existe muita poesia na sua forma, e cada palavra é desenhada praticamente como uma obra de arte. O uso da simbologia nos ideogramas vem da visão milenar de ter-se a natureza como referência. Nela, nada é exato, mas múltiplo. Por isso, é extremamente complexo traduzi-la, pois numa só expressão cabem dez significados diferentes.
Dentro dessa cultura, existe um conceito que permeia a sua estrutura: o da “face” – aquilo que se apresenta para o mundo externo, ou como o mundo externo o julga. Para aqueles que querem manter alguma relação com a China, é fundamental conhecer a expressão 面子 (miànzi). Sua tradução literal seria “face”; “rosto”. Mas seu significado é diverso, abrangendo a reputação que alguém possui dentro dos seus círculos sociais, até o respeito, prestígio e honra que uma pessoa merece e fornece. Constroem-se (e destroem-se) relações, em todas as suas esferas, baseado no quanto se faz o outro ganhar ou perder “face”. Ou seja, uma pessoa, a sua face, é equivalente à sua reputação, que varia de acordo com o quanto ela agrega ou desagrega para a reputação do outro. Tipo um influenciador. Eles já haviam entendido, com alguns milhares de anos de antecedência, que mais importante do que ser, é parecer.
Vergonha em chinês, por exemplo, se expressa na forma de “perder a face” – 丢脸 (diūliǎn). Não é apenas perder a sua própria face, mas também causar a perda da face daqueles que te rodeiam – sejam dos familiares, amigos, professores, ou instituições. O ato de envergonhar não é envergonhar-se, mas envergonhar aqueles que mantém relação com você. A expressão carrega um peso de humilhação e desonra. É tão profunda a dor que aprendemos a sentir, que histórias de suicídio por vergonha percorrem gerações na cultura. As características de ser reservado, introspectivo e discreto são as formas seguras que os chineses aprenderam para evitar as dores da vergonha.
Eu cresci me comunicando, pensando e entendendo o mundo em chinês.
A menstruação sempre foi um tema tabu na minha família. Não se fala nisso. Além de não ser assunto, também não era causa para cuidados ou responsabilidades diferentes. Estar menstruada era motivo para perder a face, como se fosse sujo ou manchasse a minha reputação. Era vergonhoso. Minha mãe saía correndo para limpar os lençóis antes do meu pai e irmão verem, e aprendi cedo a não deixar nenhum rastro de que estava naqueles dias. Jamais cogitei a possibilidade de não ir para a escola, pular uma prova ou deixar de fazer a tarefa de casa por conta de dor, cansaço ou indisposição. O que não quer dizer que não sentia isso, todos os meses.
Um dos meus sonhos para o vestibular era ser médica. Havia uma discussão na época sobre a aptidão das mulheres como neurocirurgiãs por conta do desequilíbrio hormonal durante a menstruação. Inclusive, era essa a justificativa para não ter havido nenhuma mulher historicamente nessa especialidade. Acreditava-se que isso as tornava instáveis para exercer responsabilidades de risco.
Questionei a minha capacidade como um todo para ser médica, porque concordei com essa explicação. Não achava que aquilo se limitava apenas à neuro-cirurgia, mas permeava a responsabilidade como um todo de cuidar da saúde de uma outra pessoa. Por mais que me esforçasse para exercer todas as minhas funções, todos os meses eu passava dias me sentindo fora de mim. Tinha dias que chorava sem motivo, outros que mal conseguia me levantar de tanta cólica. Imagina estar num dia desses e ter um paciente dependendo de mim para salvar a sua vida?
A ironia das crenças limitantes é que acreditamos tanto nos seus limites que elas nos impedem de questionar outra forma de enxergar a vida. A realidade se torna aquilo no que acreditamos, não existe outra possível. Isso diminui as nossas possibilidades, para não falar de quando não as restringem a apenas uma. Nunca pensei em questionar o raciocínio lógico dado pelos médicos da época, porque condizia com a forma que aprendi a pensar em casa. Os homens eram, sem dúvida alguma, mais competentes do que eu para exercer a função médica. Não passavam pelo processo vergonhoso de desequilíbrio hormonal. Eram estáveis e consistentes, e consequentemente mais confiáveis, para salvar vidas. Sem ter com quem falar e nem saber como fazer isso, desisti desse sonho e parti para outra. Escolhi o melhor caminho para evitar a dor do constrangimento.
Ano passado minha mãe decidiu criar um filhote de lhasa. Foi uma experiência nova conviver com um filhotinho, sendo que a última vez que tive um foi há mais de 20 anos. Todo dia é um dia novo. Mas um dia a Panda apareceu muito estranha. Chamava e ela não vinha. Quando vinha, andava dois passos e deitava no chão. Não chorava nem reclamava. Só me olhava com cara de desinteresse e cansaço com tudo que fazia para animá-la. Estava claro que algo não estava bem. Fui rodando mentalmente todos os sintomas e suas possíveis causas até fazer as contas e perceber que estava para ter seu primeiro cio. Passei então a observá-la com curiosidade, quase infantil, para ver como um animal reagia a uma transformação dessas no corpo. Aprendi muito com a Panda.
Eu a contemplei em estado de silêncio, isento de julgamentos. As reações da Panda eram muito parecidas com as que eu tinha. Ou as que eu tinha vontade de ter: ficar quieta, guardando energia física para todas as transformações que tomavam conta do corpo. Seu recolher mostrava que era para dentro onde estava se vivenciando naquele momento. Nada fora a interessava. Contemplando a si própria e a natureza. Que coisa mágica preparar um corpo para gerar outra vida, e como o corpo se prepara para toda essa transformação. Uma metamorfose interna criando asas para a continuidade da vida.
Alguns dias depois, fiquei menstruada. Acordei de manhã com o despertador para treinar e senti um cansaço que inchava o meu corpo. Mas tinha que treinar. Lembrei da Panda e me perguntei pela primeira vez: “Tenho? Por quê?” Dei a largada para uma discussão interna, que refletia todas as vozes que ouvi em algum momento da vida: “Vou perder um treino por que estou menstruada? Então todo mês vou perder treinos? Se a mulherada toda dá conta, e em situação até mais complexa, por que não posso dar? Não vou treinar para ficar aqui na cama? E se a minha diarista me vir na cama às 9 da manhã, o que vai pensar de mim?”
Fechei os olhos e me conectei com o meu corpo. Senti como a minha barriga estava inchada e latejava com calor. Devia estar uns 3 graus mais quente que o resto do meu corpo. Senti a minha lombar doída, como se alguém tivesse me dado um murro nas costas no meio da noite, e um cansaço que pesava até nos olhos. Minha perna só queria ficar deitada mais um pouco antes de começar a sustentar toda a transformação do meu corpo para o resto do dia. Escutei meu corpo, dei um mudo na mente, e não fui treinar.
Nesse momento milhares de sentimentos borbulham dentro de mim. Diversas vozes me julgam e me jogam naquele lugar tão familiar que é a vergonha para mim. É um lugar que me encolhe. Não apenas no tamanho, mas na energia. Ela tira cor do coração e coloca peso no corpo. É um sentimento que me fecha em um lugar escuro, e nesse lugar não se enxerga mais beleza. É vergonha de encarar a vida olho no olho, de levantar o olhar, até de me olhar no espelho. É difícil encarar a face que se tem, que se é.
Quando essas vozes surgem, percebo que não sou tão livre para tomar as minhas decisões como achava. Evitar a vergonha, ou o que acredito ser vergonhoso, é o que norteia minhas escolhas. Do que faço ou sonho, do que falo ou escrevo.
Mas quero travar uma batalha interna pela minha liberdade. É lá que a liberdade reside, oferecendo o maior presente da vida: possibilidades. Quero escolher, a cada instante, me abrir e expandir no que sou e não deixar o lugar comum me encolher. Isso começa quando consigo me questionar porque realmente tomo a decisão que tomo, e perceber que existem outras realidades além daquelas que eu enxergo.
Hoje, quero me conectar com o meu corpo, aprender a escutá-lo e a respeitá-lo. Porque meu corpo, assim como a Panda, é natureza. A natureza é feminina porque ela é fecunda, múltipla e contínua. Quando deixo de priorizar “o que os outros vão pensar” para valorizar “o que estou sentindo”, digo à minha ancestralidade que respeito sua face, mas não vou mais desonrar a minha natureza. É sagrado ser natureza. O sagrado se honra simplesmente vivenciando o que ela nos apresenta, com os seus movimentos e transformações. E hoje a natureza me diz: escreve. Com dor e tudo.
Publicado no site do Infame: https://infame.us/2018/01/28/liberdade-sem-vergonha-2/
Comments